Duas xícaras

Terça à tarde. Chove há duas semanas e eu não consigo pegar minha pantufa. “Você aí de novo? Enquanto você não emagrecer não vai conseguir chegar até lá, minha filha, já te disse?”. Ainda não contei a ele sobre meu plano, por isso tento me agachar até o máximo que consigo para pegar o pé esquerdo da pantufa que insiste em se enfiar em uma das gretas do emaranhado de papéis, sapatos e cabides debaixo da cama. Olhando daqui não parece tão errado que ela esteja lá, afinal, as coisas parecem ter essa disposição natural quando se trata de um lugar para ficar: tudo sempre vai estar debaixo da cama. Acabo por desistir e saio à procura do chinelo azul-escuro do meu irmão que é um desastre de grande e tem um das solas descoladas.

Chove há duas semanas e hoje é feriado. Fui ao supermercado e na volta vesti novamente meu roupão – o mesmo que visto há cinco dias. Quando passei pelo espelho da copa, me pareceu um pouco encardido, mas talvez seja só meu cabelo que precise de uma hidratação e meus óculos de um banho do líquido azul daquela loja da Espírito Santo, que uma mulher me fez comprar cinco vidros por vinte reais. Que fosse trinta, eu deveria ter comprado seis. Dei uma baforada e limpei com uma das mangas do roupão – ficou embaçado, seda não é tecido pra limpar óculos. Mesmo que não estivesse sujo, fiquei com nojo do roupão, embaçar meus óculos quando o que mais preciso é ir ao oftalmologista? Continuei enxergando embaçado, mas troquei de roupão e agora um cheiro novo impregnava o quarto, um perfume doce de roupa limpa. Cheirei o roupão e dele só veio um odor agudo de naftalina. Andei até a copa e reconheci de onde vinha – era minha irmã trocando os lençóis recém apanhados do varal. “Por que você ta usando isso? Cadê o seu?”. “Sujou, eu acho.” Nina bufou e saiu andando. Eu entenderia o porquê da desaprovação se já não tivesse se passado tanto tempo desde que o roupão fora guardado. Hoje o dia estava assim: era como se ela estivesse em todos os lugares, desde que saí cedo pra comprar pão e vi em cima da mesa a xícara que fiz pra ela com os dizeres “feliz dia da melhor amiga” e que não a pertencia mais, que, aliás, nunca a pertencera. Recalquei a lembrança de que em dias assim ele ficava mais melancólico, há cinco anos não fala dela, mas sei que se lembra diariamente e o fato de a xícara estar fora do armário me fez dar a volta na casa e ir até à janela de seu quarto. Ele assistia a algum filme do Buster Keaton, oportuno para um dia de poucas palavras, esteve mudo também durante todo o tempo em que fiquei observando, sempre com a xícara na mão, sorvendo o conteúdo como se não tivesse gosto (ou como se quisesse que não houvesse ou talvez isso realmente não fizesse diferença), subindo e descendo lentamente, segurando com as duas mãos já vermelhas que não vacilavam diante do calor da bebida. Enquanto Keaton fazia uma fuga de bicicleta, ele leu os dizeres da xícara inúmeras vezes, estacionando os dedos polegares sobre uma carinha feliz que eu só lembrava de ter feito para ocupar espaço.

Quando voltei para dentro de casa, fui direto ao meu armário, peguei uma caixinha roxa que fica ao lado do álbum vermelho de casamento – que herdei porque precisava ser salvo – e tirei de lá o que eu sempre pensei ser inútil, afinal, minha casa sempre tivera muitos outros copos. Fui até a cozinha, fiz um pouco do capuccino caseiro, de receita dela, que era do que ele provavelmente se servia. Andei até a porta de seu quarto, não sei quanto tempo levei. Fiquei parada mais algum tempo na entrada até que ele se incomodou e pediu que eu me sentasse a seu lado. Quando arrisquei o primeiro gole, só consegui ir até à metade do movimento, sendo desencorajada, tamanho era o espanto dele ao ver a xícara. “Que foi?”, perguntei procurando fazer com que as palavras soassem o mais displicente possível. “Nada, querida, só queria saber se estava frio, dá aqui que eu sopro”. Entreguei-a a ele e o que se prosseguiu foi o mesmo ritual de antes, quando eu o observava pela janela, com a exceção de que agora passava outro filme do Keaton e que ele não bebera do meu capuccino.

“Pai, eu não vou mais ao médico. Resolvi que quero ficar assim. A Nina tem só doze anos, pode pegar minha pantufa, caso eu precise.” Não disse nada, tinha a mesma expressão impassível de Buster, o que me apavorou por um milésimo de segundo. Entregou-me a xícara enquanto lia o que estava escrito nela: “meu pai é um bobão”. E então sorriu. Ele também sabia que seu preferido era Carlitos.

*

Dia desses, meu irmão foi ao mercado central. O que antes fazia parte de uma rotina passou a ser um dos piores lugares para estar. Sinto como se cada vendedor simpático, velhos conhecidos, me arrancassem um pedaço pra ficar ali com eles, na falta da presença nem sempre bem humorada, nem sempre tão educada, mas certa, e constante. Tive medo de perde-la por inteiro. Meu irmão ainda gosta de ir e dessa vez comprou quase todos os temperos que ela usa: páprica doce, pimenta rosa, pimenta-do-reino, pimenta calabresa, ervas de provence, açafrão, curry e sementes de papoula. Soube que ele tinha chegado quando senti o cheiro forte que todos os temperos juntos formam. “Cheiro de mercado”, murmurei antes de me virar para constatar. Ele, com um sorriso calmo, como se não houvesse nada mais exato para responder, replicou: “cheiro da minha mãe”. Colocamos todos os temperos em um só pote. Os pacotinhos ainda estão fechados. Decorei cada um dos nós. Se alguém usou, amarrou-os novamente de forma idêntica ao dono da banca. Abro diariamente pra lembrar, sem muita certeza de quê, só entendo que não devo mexer. Sempre acho o pote fechado de uma forma diferente da que fecho.

3 Comentários

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3 Respostas para “Duas xícaras

  1. Thais M.

    Tereza, ontem à noite o Lucas, no retorno da Federal, perguntou se havíamos lido seu texto, acrescentando que tinha gostado. Eu ainda não tinha tido tempo. Lemos juntos quando chegamos em casa e li novamente agora pela manhã, sozinha.

    Quando terminei a leitura, lembrei de uma casa de uma amiga com um cheiro muito característico de massa de bolo. A mãe dela costumava fazer uns dois por semana. Acho que se sentisse o cheiro daquela massa poderia voltar àquela casa que hoje já está tão distante.

    Hoje, ao reler com cuidado o seu texto, que me tocou muito, lembrei de uma série de cheiros e senti falta dos espaços em que eles permeavam.

    Parabéns mesmo pelo texto!

    • É muito bonita a forma como a cozinha toma o restante da casa com o que vem de lá. Sempre há algo guardado. Seja pelos inúmeros cheiros ou pela mesinha de canto, sempre com um bolo em cima.
      Muito obrigada, Thais.

  2. laura cohen

    Que delícia rever esse texto! Enrolei pra ler, mas ficou muito legal Teka!

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