Todos voltam para casa. Não sou Odisseu. Não há Ítaca.

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Deito-me de lado na cama de hotel, coberta por lençóis brancos. Encaro a mala aberta com livros, um punhado de roupas, objetos de higiene pessoal a minha frente. O que fazem esses objetos serem meus. Por que eu os escolhi entre todas as outras coisas que ficaram para trás. Levanto-me vagarosamente. Coloco as roupas dentro do armário do hotel, os livros em cima do criado-mudo, minha escova de dente no banheiro. Não reconheço nada daquilo que toco. Posso destruir tudo, nada disso é meu.

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Ouvi ontem no jornal uma voluntária na enchente da serra dizendo para que enviassem às vítimas não só alimentos básicos e itens necessários à sobrevivência, mas também brinquedos, roupas boas, livros, para ajudar na “reconstrução existencial”. Eles precisavam se sentir em casa, confortáveis, para amenizar o trauma sofrido. O que faz cada um se sentir em casa.

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O que faz cada um se sentir confortável com a própria existência. Tenho medo, não consigo enxergar nada. Só consigo ver uma parede branca. Opressora. Não consigo relacionar minhas memórias, meus sentimentos, o presente. Tudo se mistura e se apaga. Tenho medo das minhas memórias. Tenho medo do que antecede, do que refleteem mim. Tenhomedo do que me atinge agora e de não poder responder. Não há reação, apenas a falta, o resto.

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Estou na fresta, uma fenda que se abre para o abismo. Consigo sentir a infinitude tocar a minha pele e com um único suspiro desencadeio a ruína.

 

1 comentário

Arquivado em júlia arantes

Uma resposta para “

  1. Tenho essa amiga que sempre me diz que quando eu fumo só falo sobre querer voltar pra casa. Afastar-se é como ruir. Lindo texto, Júlia.

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