casa sem cômodos

(Durante as férias, mais exatamente de 14 a 31 de julho, eu estive em Diamantina ajudando a produzir o EM COMODO, a residência artística organizada pelo D.A. da Escola de Belas Artes paralelamente ao Festival de Inverno da UFMG, que recebe alunos para que desenvolvam projetos artísticos em grupo ou individuais em suas duas semanas de duração. Lá, pouco a pouco, foi surgindo uma grande necessidade de criar, para mim, uma espécie de registro do que aconteceu, do que eu fui sentindo na medida em que as coisas ocorriam. Desde o início, no entanto, tive dificuldades de fazê-lo sob a forma de imagens. No último dia, durante a discussão final da casa – nós usualmente nos encontrávamos para discutir algum tema, ou ouvir alguns dos residentes falar do seu processo – rabisquei no meu caderno o que viria a ser o esqueleto do texto que está aí. Enfim, eu não escrevo com a frequência com que o fazem muitos de meus colegas de bazar, por isso espero que vocês entendam esse texto da maneira com que ele me veio: uma tentativa de registro subjetivo desse processo, que eu curiosamente não consegui fazer sob a forma de imagens, mas que eu decidi aceitar mesmo assim e dividir com vocês.)

Eu moro em uma casa sem cômodos.

Vivo só, por isso, às vezes, assisto o sol caminhar pé ante pé pelo espaço, desenhando um retângulo de luz que varre o chão, que lambe as paredes, que impede que eu durma quando quiser. Essa luz que dói e me cega, quando me assento no chão e examino as marcas que ele a as paredes apresentam. Elas não se movem.  Ás vezes minhas costas doem, mas eu gosto de deitar ali mesmo e sentir o frio.

Abro as janelas para o vento entrar e fazer barulho. Desejo que ele traga folhas da rua, que levante a poeira que insisto em não varrer. Espero durante horas que as correntes de vento façam bagunça em casa. Mas nada. Minha casa sem cômodos não tem lado de fora. 

Penso também em fazer um café, um chá, me escorar em algum lugar e fazer dessa solidão ao menos algo confortável. A maior parte das vezes, porém, não consigo. Eu não trouxe esses objetos de casa comigo.

Eu moro sozinha, em uma casa sem cômodos, que também é vazia.

Ás vezes, sem avisar, algumas pessoas invadem essa casa. São pessoas que eu não vejo, nem posso tocar, mas das quais escuto os passos e os sussurros nas madrugadas enquanto o mundo dorme e as manhãs ainda são brancas.

Quantas pessoas são? Duas, quatro, trinta e cinco? Apenas uma? Mesmo assim essas pessoas, intrusas na minha casa sem cômodos, me chamam. Meu nome é assoprado por entre as tábuas do assoalho.

Eles não chegam aos poucos.  Eles vêm aos bandos e trazem coisas. Objetos, malas. Parecem querer mobiliar a minha casa sem cômodos, esses espectros que não enxergo, mas sei que estão ali. Eles fazem fogueira, enchem de cinzas uma casa que antes não tinha lado de fora, mas que por vezes é varrida por uma corrente de vento que quebra os vidros, que bate as portas, portas que ainda não existem na minha casa, mas que tanto querem colocar.

E eu ainda peço, educadamente, que por favor, sejam gentis, respeitem meu espaço e façam silêncio. Que não tragam tantos objetos, que não venham com suas malas e colchões infláveis construir paredes na minha casa sem cômodos.

Mas eles vêm. E colocam mesas, bancos, livros. Espalham canecas pela minha casa antes sem cômodos. Fumam na varanda, espalham roupas pela sala quando chove e os varais estão cheios, grande azar. Carimbam, projetam e desenham nas paredes. Inventam tomadas, tecem redes de fios perigosas pela sala. Fazem mousse de maracujá e caipirinhas na cozinha, se esquecem de por água no filtro.

Minha casa sem cômodos não é mais a mesma. Eu não consigo mais ver a luz passar, o desenho no chão, a poeira que se acumula. As pessoas que chegam tomam meu tempo, meu sono, minha calma. Compartimentam minha casa que não deveria ter cômodos, informação que esses estranhos parecem querer ignorar.

E essas pessoas só dormem quando está claro. Elas saem durante a tarde e parte da noite, mas sempre retornam. E às vezes se reúnem para conversar palavras com as quais não concordo, mas contra as quais acho difícil argumentar. E eu tento alcançar outra cidade, ao menos outro bairro, o fim da rua, a porta. Mas essas pessoas já me amarraram, e eu me mantenho, livremente, como refém em uma casa que um dia não teve cômodos, e que agora tem paredes que crescem como plantas intrusas num jardim que um dia foi só meu.

Ainda assim essas pessoas às vezes me arrancam sorrisos. Espirram. Assoviam. Cantam comigo. Trocam de roupa. Me embalam em canções de amor e solidão as quais acho difícil esquecer.  São homens, mulheres, pouco importa. Andam vendados com pano branco e às vezes com carne. Têm as bocas tampadas. Guardam na pele a vermelhidão que confirma andanças por terras secas ou atrás de objetos que as escolham. Ou nos dedos, cortes de estilete, queimaduras de foguetes, marcas de um trabalho que, ao que parece, se desenvolve, trabalho que salva. E tiram fotos, desenham, trazem visitas do Rio, essas pessoas que agora parecem morar comigo.

Mesmo assim derrubam as minhas portas, arrombam minhas janelas e permitem que o nível de uma água tão gelada que parece cortar suba até a minha cintura e depois até os meus ombros o meu queixo os meus olhos e me sinto afogar nessa casa que antes era só minha e agora é um lugar para se perder o ar.

E essa casa não é mais só minha.

E essa casa agora tem cômodos e portas, que se mantém abertos, o tempo todo. Cheia de paredes, minha casa sem cômodos parece um labirinto do qual é impossível escapar.

Essa casa não tem mais cantos em que seja possível me esconder.

3 Comentários

Arquivado em ana paula garcia

3 Respostas para “casa sem cômodos

  1. Mari

    Essa casa, que já é nossa, me abraçou pela cintura até me tirar o fôlego. Abriram vincos pelos cacos de vidro, de incômodo, de amor. Agora ela está vazia, e os passos continuam ecoando pelos meus ouvidos, que depois de habitar essa casa, saboreiam novas cores…

  2. Ana, ficou lindo seu texto. Lendo fiquei rememorando essas duas semanas. Algumas imagens recorrentes, algumas lembranças que deixei por lá, mas por fim mais malas vieram de volta do que as que foram. Obrigada por fazer parte dessas experiências =)

  3. Nossa, Ana, muito sensível. Muito interessante essa percepção da “casa sem cômodos” que é a verdadeira casa, que foi e será sempre a casa em questão. O dentro de si.

    Um beijo.
    Amanda Rocha, de Salvador

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